Em nota oficial, a Academia Brasileira de Letras pediu que o Projeto de Lei que propõe a criação do Marco Civil da Internet, em tramitação no Congresso, que cria deveres e direitos no uso dessa mídia, incorpore, como premissa, a defesa dos direitos dos autores.
A nota foi lida pela presidente da ABL, Ana Maria Machado, também autora do texto, durante o encontro “Criadores em defesa de seus direitos autorais”, que reuniu, na sede da instituição, no Rio de Janeiro, no último dia 5 de novembro, acadêmicos, representantes de entidades de classe, escritores, cineastas, compositores e parlamentares.
O primeiro painel, mediado por Marisa Gandelman (União Brasileira de Compositores), contou com as participações de Paulo Rosa (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), Sydney Sanches (União Brasileira de Editoras de Música), José Francisco de Araújo Lima (Organizações Globo) e Roberto Feith (Editora Objetiva/Sindicato Nacional dos Editores de Livros).
O segundo painel, mediado por Ana Maria Machado foi composto pelos escritores João Ubaldo Ribeiro e Alberto Mussa, o compositor Fernando Brant, o poeta Antônio Cícero e o jornalista Sergio Abranches.
Íntegra da nota da ABL:
“A Academia Brasileira de Letras parte sempre do pressuposto de que a literatura é uma criação do autor. Assim, reitera que uma premissa básica no exame do tema é que o trabalho do autor precisa ser remunerado – como acontece com qualquer outro trabalhador na sociedade. A garantia do respeito ao direito autoral deve ser condição sine qua non em qualquer formulação de política cultural na área da literatura e do livro, qualquer que seja seu suporte.
1. Na discussão do Marco Regulatório da internet, preocupa-nos uma aparente desinformação sobre as características específicas do universo do livro e da literatura. Há que considerar o seu sistema de criação e produção.
2. Entre as premissas do projeto do Marco Civil da Internet, tal como está redigido, não há menção à garantia do direito autoral. Chamamos a atenção para a necessidade fundamental de respeito ao direito de remuneração do autor, o trabalhador que cria o texto. Não pode passar a ser a única categoria de quem se espera que exerça sua profissão sem receber pagamento.
Está havendo uma confusão que apresenta como incompatíveis o direito de acesso e o direito autoral. Não precisa ser assim. Na internet, mesmo com acesso gratuito, as empresas hospedeiras de conteúdos lucram com publicidade e tornam seus donos milionários. Os autores, trabalhadores intelectuais que criam o produto, precisam ter sua remuneração assegurada. Não se pode ter uma legislação que reforce o equívoco de que os custos do direito de acesso devam recair sobre o direito autoral. Parece-nos fundamental que se procure uma forma de conciliar os dois direitos, sem que a lei parta do pressuposto de que o autor deva abrir mão do seu. Pelo contrário, a legislação deve proteger a parte fraca e deve insistir em todos os níveis pela caracterização das responsabilidades dos poderosos hospedeiros.
3. Esse equívoco gera um efeito pernicioso para a sociedade: sem respeito ao direito autoral, só poderão se tornar autores os privilegiados ou diletantes, aqueles que não vivem profissionalmente da autoria de textos. Deixa-se de ouvir a voz dos que não têm sua sobrevivência garantida por outros meios. Suprime-se a palavra de quem depende desse trabalho. Cala-se pela força econômica a maior parte da população, enquanto potencial produtora literária. Surge então o risco de uma grave deturpação cultural: reduzir a literatura nacional à que for produzida apenas por quem dispõe de recursos próprios, oriundos de outras fontes, e pode se dar ao luxo de não ser remunerado por seu trabalho.
4. Não existe qualquer impedimento para que qualquer cidadão possa dar livre acesso ao que escreve, nos meios que quiser. A internet oferece infinitas possibilidades para isso. Mas é uma opção individual, não pode ser um ato compulsório por lei. O direito de acesso não pode se sobrepor ao direito humano fundamental, de ser remunerado pelo trabalho, em qualquer categoria profissional. Uma sociedade que não admite o trabalho escravo não pode se esquecer disso . A legislação não pode pretender consagrar o princípio de que a utopia de distribuir bens gratuitamente a todos deva se basear no sacrifício de uma única categoria de trabalhadores, numa sociedade em que esses profissionais precisarão pagar para ter acesso a todos os outros bens necessários a sua sobrevivência. A garantia aos direitos do trabalhador avulso, sem vínculo empregatício permanente, vem expressa no Capítulo II da Constituição, artigo 7º, inciso XXXIV. Precisa ser respeitada.
5. Esquecer essa garantia implica em escolher que só poderá ter voz quem seja pago por outros, que não os consumidores — diretamente como leitores ou indiretamente, pela publicidade. Não podemos ter a ingenuidade de aceitar que aqueles que eventualmente remunerem e permitam a sobrevivência de autores de textos assim produzidos sejam os únicos a ter condições de defender seus interesses (expressos então pela voz contratada), enquanto eventuais vozes dissonantes ou independentes não podem se manter, ao expressar opiniões diferentes da encomenda. Esse mecanismo impõe um pensamento único. A sociedade tem direito a ter contato com diferentes ideias e manifestações do pensamento, mesmo que não sejam as dominantes, controladas por grupos poderosos, privados ou públicos. A garantia dessa liberdade é um pressuposto fundamental em uma democracia.
6. Na questão do acesso livre aos textos, cumpre ainda distinguir a literatura das publicações científicas. A produção literária resultante da criação individual, que é fruto de tempo e esforço ainda não compensados financeiramente, exige garantias diferentes da promoção da livre difusão do conhecimento resultante de pesquisas ligadas a instituições que as financiam, já remuneradas quando de sua realização.
7. Lembramos que o direito autoral é um dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição em seu Título II, Capítulo I, artigo 5º, inciso XXVII. E que o Brasil é signatário de acordos internacionais de proteção ao direito autoral e não pode rompê-los unilateralmente sem virar um pária internacional nessa área.”