O Supremo Tribunal Federal realizou dia 21 de novembro uma audiência pública sobre biografias não autorizadas por solicitação da ministra Cármem Lucia. Ela é a relatora no STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815 de iniciativa da Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL).
No final da audiência, a ministra Cármem Lucia afirmou que pretende liberar a ação, até o final de dezembro, a fim de que o presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, a inclua na pauta de julgamentos do Plenário.
Ao todo, 17 pessoas foram ouvidas na audiência. Os participantes foram escolhidos pela própria Cármem Lucia, após inscrições prévias. Dentre os que participaram da audiência estava a presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros e da Associação Nacional dos Editores de Livros, Sônia Machado Jardim, que fez o seguinte discurso:
“Já dizia Monteiro Lobato, um país é feito de homens e livros. Em um país com baixos índices de leitura como o Brasil, editores deveriam estar dedicando seu tempo e esforços no sentido de exercer seu ofício de forma plena, contribuindo na construção de um Brasil melhor, formando leitores, incentivando novos escritores e levando educação e informação de qualidade ao nosso povo. Entretanto, hoje, nós editores, nos encontramos reféns da insegurança jurídica, amedrontados, passamos a ler um original com os olhos de censor, revisando um texto não em busca de uma melhor forma literária, e sim à procura de futuras ações judiciais, tomando muitas vezes a decisão da não-publicação de livros importantes e fundamentais para o registro da história do nosso país. Isto porque:
Os artigos 20 e 21 do Código Civil brasileiro têm sido interpretados no sentido da obrigatoriedade da autorização prévia das pessoas retratadas em obras biográficas – ou de seus familiares, no caso de pessoas falecidas – como condição para a sua publicação. Por conta disso, o Poder Judiciário tem determinado o recolhimento de livros, de conteúdo biográfico, quando ausente o consentimento dos personagens retratados. Este fato impacta tanto a publicação de biografias não-autorizadas, como a publicação de biografias autorizadas.
A exigência da autorização dos biografados, assim como dos personagens coadjuvantes, é incompatível com as garantias constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, da liberdade de criação intelectual e artística, da liberdade de pesquisa acadêmica e com o direito da sociedade de ser livremente informada. O mecanismo da autorização prévia se configura como forma velada de censura privada, exercida com o intuito de silenciar ou de alguma forma tolher as liberdades constitucionais voltadas à proteção e promoção do livre mercado de ideias e informações.
A Constituição de 1988, de maneira robusta e saudavelmente redundante, assegura os direitos de criação, pesquisa e manifestação do pensamento, assim como os direitos de informar e ser informado, no art. 5º, incisos IV, IX e XIV e no art. 220, §1º e §2º. Em tais dispositivos, a Lei Maior prevê que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição e poderão ser divulgadas independentemente de censura ou licença. Assim, ao instituir um veto peremptório a obras biográficas em favor dos personagens retratados, a lei brasileira criou um mecanismo de censura prévia (ou licença prévia, pouco importa o nome que se lhe dê), absolutamente incompatível com a letra e o espírito da “Constituição Cidadã”.
Os efeitos deletérios produzidos por tal mecanismo censório sobre o livre mercado de ideias e informações são gravíssimos. Primeiro: um efeito silenciador sobre escritores, historiadores, pesquisadores, jornalistas, editores e produtores audiovisuais, que se veem proibidos de divulgar suas obras em razão do veto exercido por biografados, personagens secundários ou seus respectivos familiares. Segundo: um efeito distorcivo sobre fatos, documentos, depoimentos e informações, que acabam vetadas ainda quando existe o consentimento com a publicação. Terceiro: a criação de um verdadeiro balcão de negócios em torno das licenças, que alcançam cifras muito elevadas e acabam muitas vezes por inviabilizar a publicação ou a veiculação da obra.
A liberdade da publicação e circulação de biografias não autorizadas é plenamente compatível com as garantias constitucionais da privacidade e da intimidade. Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados. É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.
Não cabe ao biografado, a seus familiares, nem a qualquer juiz ou outra autoridade pública, avaliar, caso a caso, o grau de interesse público de determinada informação constante de obras biográficas. Em casos de ofensas que caracterizem os crimes de calúnia, injúria ou difamação defendemos uma célere e efetiva intervenção judicial, que condene os responsáveis ao pagamento de indenizações e ao cumprimento das sanções previstas no Código Penal.
A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.
Desejamos que o leitor brasileiro possa ter acesso aos livros de autores brasileiros, que dedicaram anos a fio para pesquisar e escrever estas obras, que hoje correm o risco de estarem engavetadas ou serem publicadas mutiladas, e não somente ter acesso às biografias de personalidades estrangeiras, oferecidas hoje sem nenhum tipo de restrição nas prateleiras das livrarias do nosso Brasil.”