O Senado aprovou nesta terça-feira (10) o projeto que regulamenta a inteligência artificial (IA) no Brasil. A matéria segue agora para a análise da Câmara dos Deputados. O texto se apresenta como um marco regulatório com regras para o desenvolvimento e o uso de sistemas de IA. Entre os dispositivos está um que prevê a proteção dos direitos dos criadores de conteúdo e obras artísticas. A votação foi conduzida pelo senador Weverton (PDT-MA).
O texto aprovado nesta terça-feira é um substitutivo do senador Eduardo Gomes (PL-TO) que tem como base o PL 2.338/2023, projeto de lei apresentado por Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. E esse projeto, por sua vez, surgiu a partir de um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas.
O substitutivo também engloba dispositivos sugeridos em outras sete propostas — inclusive no PL 21/2020, já aprovado pela Câmara dos Deputados — e em dezenas de emendas de diversos senadores.
Antes de chegar ao Plenário do Senado, a matéria tramitou na comissão temporária sobre o tema, onde foram realizadas 14 audiências públicas com a participação da sociedade civil e de diversos setores (tanto da iniciativa pública como privada), além de especialistas em tecnologia e inovação.
A versão aprovada nesta terça-feira manteve fora da lista de sistemas considerados de alto risco os algoritmos das redes sociais — decisão que atendeu a pedidos dos senadores oposicionistas Marcos Rogério (PL-RO), Izalci Lucas (PL-DF) e Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e que provocou o lamento de alguns parlamentares governistas.
Por outro lado, o texto atendeu a uma demanda dos senadores governistas ao manter o dispositivo que prevê a proteção dos direitos dos criadores de conteúdo e obras artísticas. Esses foram dois pontos que geraram maior dificuldade de entendimento entre os dois blocos.
O senador Carlos Viana (Podemos-MG), que foi o presidente da comissão temporária, considerou o texto aprovado como um resultado do consenso, dentro do que foi possível, e avaliou que a proposta traz avanços, sobretudo ao colocar o ser humano como o princípio “de todas as coisas”, na centralidade das decisões. Ele ainda enfatizou que o substitutivo não faz qualquer menção a trechos que possam ser percebidos como possibilidade de censura em redes sociais. No entanto, Viana ressaltou que a proposta atribuiu responsabilidades aos sistemas que desenvolvem inteligência artificial sobre as ferramentas a serem disponibilizadas à sociedade brasileira.
— Foi um relatório em que nós conseguimos chegar a um consenso quanto à maior parte das colocações trazidas pelos senadores e pelas senadoras. E [buscamos garantir] o respeito ao ser humano; o princípio da privacidade. A possibilidade de que uma pessoa, quando vítima de uma determinada tecnologia, ela automaticamente tenha acesso para entender de onde isso veio, como aconteceu e, principalmente, possa se defender daquilo que está sendo colocado. E ali não há uma linha sobre censura ao que se escreve em rede social. As pessoas são livres para colocar a sua opinião, as suas ideias, as suas propostas. O projeto não tira absolutamente qualquer liberdade de grupos se manifestarem em rede social.
O texto foi aprovado em votação simbólica, mas quatro senadores se manifestaram para indicar seu voto contrário: Cleitinho (Republicanos-MG), Eduardo Girão (Novo-CE), Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e Magno Malta (PL-ES).
Eduardo Gomes, ao classificar o substitutivo como o “texto possível” e que esse é um primeiro passo, considerando que o assunto demanda constante atualização legislativa, disse que a construção coletiva da proposta possibilitou um texto que mantém a liberdade de expressão no país, mas que também permite o desenvolvimento de sistemas que estimulem a competitividade e o ambiente de negócios.
— Esse projeto não é de esquerda, não é de direita. É da humanidade. Precisa manter os direitos de debate no sistema bicameral, indo à Câmara e voltando para um novo debate no Senado. E nós estamos cumprindo com a nossa obrigação, principalmente, de garantir os direitos autorais, que ficam vinculado aos artistas, àqueles que fazem a arte, mas são igualmente necessários para os profissionais liberais, para a comunidade acadêmica (…). Os advogados, os médicos, toda a sociedade que precisa entender que qualquer uso de material que produz e que, principalmente, gera recursos deve estabelecer o direito sagrado à criação.
Direitos autorais
Os senadores mantiveram no texto a proteção dos direitos dos criadores de conteúdo e obras artísticas.
O substitutivo estabelece que conteúdos protegidos por direitos autorais poderão ser utilizados em processos de “mineração de textos” para o desenvolvimento de sistemas de IA por instituições de pesquisa, de jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e organizações educacionais. No entanto, o material precisa ser obtido de forma legítima e sem fins comerciais. Além disso, o objetivo principal da atividade não pode ser a reprodução, exibição ou disseminação da obra usada, e a sua utilização deve se limitar ao necessário para alcançar a finalidade proposta — e os titulares dos direitos não podem ter seus interesses econômicos prejudicados injustificadamente. O titular de direitos autorais poderá proibir o uso de conteúdos de sua propriedade nas demais hipóteses.
O texto também prevê que o uso de conteúdos protegidos por direitos autorais em processos de mineração, treinamento e desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial disponibilizados comercialmente dará direito de remuneração aos titulares dos respectivos direitos.
Já o uso de imagem e voz de pessoas por sistemas de IA deverá respeitar os direitos da personalidade, conforme previstos no Código Civil.
Isso significa que qualquer utilização desse material precisa de consentimento prévio e não pode causar danos à honra, à reputação ou à intimidade das pessoas. A violação dessas garantias pode resultar em ações judiciais e pedidos de indenização.
Artistas como o ator Paulo Betti, as cantoras Marina Sena, Kell Smith, Paula Fernandes, o cantor Otto e a produtora Paula Lavigne estiveram no Plenário acompanhando a votação da proposta. Apesar de reconhecerem o papel da inteligência artificial e o avanço natural dos processos tecnológicos, eles reforçaram a necessidade de aliar tecnologia à criatividade, respeitando a subjetividade humana.
— Ninguém está aqui lutando contra a inteligência artificial, porque a inteligência artificial a gente entende como uma tecnologia que veio também para trazer progresso. Mas a gente entende que, se há empresas ganhando bilhões com isso, essas empresas precisam arcar com as consequências e precisam arcar com essa mineração de dados que fazem com a nossa obra, com a nossa vida. E não só a nossa vida, mas a vida de toda a população brasileira — disse Marina Sena em coletiva de imprensa.
Mesmo com alguns senadores governistas lamentando o fato de o substitutivo não incluir os algoritmos das redes sociais na lista de sistemas considerados de alto risco, os parlamentares da base do governo em geral consideraram o texto aprova equilibrado e com avanços, como no trecho que garante a proteção dos direitos autorais.
— Em qualquer tipo de atividade econômica existe o insumo que é fundamental, e quem coordena aquela atividade tem de pagar por ele. No caso da inteligência artificial, o principal insumo é a criatividade, é o que cada um foi capaz de criar, e que vai ser minerado pela empresa que vai desenvolver o programa de inteligência artificial, que também terá de pagar por isso por conta da criatividade que as pessoas inserem na sua produção musical, literária, no que quer que seja — disse o senador Humberto Costa (PT-PE).
Integridade da informação
O substitutivo retirou do texto um artigo que previa o risco à integridade da informação, à liberdade de expressão, ao processo democrático e ao pluralismo político como critério para regulamentação e identificação — pelo SIA — de novas hipóteses de IA de alto risco. Não houve acordo sobre esse artigo entre governistas e oposicionistas.
Também ficou de fora o trecho que atribuía à IA generativa a responsabilidade sobre a integridade da informação. Para senadores da oposição, esse artigo poderia funcionar como mecanismo para o controle da liberdade de expressão e do acesso à informação.
Em seu voto, o relator da matéria, Eduardo Gomes, concordou com os argumentos desses parlamentares. “Conforme já asseverado, a liberdade de expressão se apresenta como premissa básica a qualquer sociedade democrática, e o texto ora relatado jamais poderia ser utilizado para afetar essa prerrogativa”, afirmou Eduardo Gomes em seu parecer, ao explicar a retirada do artigo.
IA generativa e sistemas de propósito geral
Os sistemas conhecidos como generativos e de propósito geral terão regras específicas. Antes de esses sistemas serem disponibilizados no mercado, seus agentes devem realizar a avaliação preliminar para classificação de risco. Devem também demonstrar que identificaram e mitigaram possíveis riscos aos direitos fundamentais, ao meio ambiente, à liberdade de expressão, à integridade da informação e ao processo democrático. Esses sistemas devem ser concebidos de modo a reduzir o uso de energia e outros recursos e a produção de resíduos. Também só poderão processar dados em conformidade com as exigências legais.
Conteúdos sintéticos como textos, imagens, vídeos e áudios produzidos ou modificados por meio de IA deverão conter identificador — que poderá ser disponibilizado na forma de metadados — para que se possa verificar a sua autenticidade e a sua proveniência. O texto aprovado prevê a regulamentação (em parceria com a iniciativa privada, profissionais de pesquisa e a sociedade civil) de formas de identificar e rotular esses conteúdos.
Sanções administrativas e responsabilidade civil
A infração das normas contidas no substitutivo poderá sujeitar desenvolvedores, fornecedores e aplicadores de sistemas de inteligência artificial a multas de até R$ 50 milhões ou a 2% do faturamento bruto do grupo ou conglomerado por infração.
Outras sanções previstas são advertência, proibição de tratar determinados dados e suspensão parcial ou total, temporária ou permanente do desenvolvimento, fornecimento ou operação do sistema.
O texto prevê que a responsabilização civil por danos causados por sistemas de inteligência artificial estará sujeita às regras previstas no Código Civil ou no Código de Defesa do Consumidor, conforme o caso. Caberá a inversão do ônus da prova quando for muito oneroso para a vítima comprovar o nexo de causalidade entre a ação humana e o dano causado pelo sistema.
Fonte: Agência Senado